segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Sobre duplo grau de jurisdição: textos de Carlos Velloso e Luiz Flávio Gomes


Abaixo reproduzo dois artigos publicados na Folha de São Paulo no último sábado (13), sobre duplo grau de jurisdição
Fontes:


CARLOS VELLOSO
TENDÊNCIAS/DEBATES

A Corte da OEA pode interferir na decisão do STF sobre o mensalão?
NÃO

A Constituição não se subordina a tratados
Condenados na ação penal do mensalão dizem que vão recorrer à Corte da OEA da decisão do STF, porque não lhes foi garantido o duplo grau de jurisdição.
Indaga-se: a Corte da OEA poderia interferir, no caso?
A Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil e incorporada ao direito brasileiro, estatui que são competentes para conhecer de assuntos, relacionados com o cumprimento do pacto, a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos (artigo 33).
A comissão é como que uma primeira instância da corte. Qualquer pessoa pode apresentar a ela queixas de violação da convenção por um Estado-parte. Ao cabo do processo, a comissão apresentará relatório. Não solucionado o assunto, a comissão fixa prazo ao Estado a fim de adotar medidas para remediar a situação. Esgotado o processo de competência da comissão, Estados-partes ou a própria comissão podem submeter o caso à decisão da Corte (artigos 48-50, artigo 61).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos assenta que as pessoas têm direito de receber dos tribunais nacionais competentes remédio para os atos que violem direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei (artigo 8º). Nessa linha, o Pacto de São José da Costa Rica assegura aos acusados o direito de recorrer a juiz ou tribunal superior (artigo 8º, h). E que todos têm direito a recurso perante juízes ou tribunais competentes (art. 25).
Verifica-se que a Convenção preocupa-se em assegurar medidas judiciais que tolham o desrespeito aos direitos fundamentais. Todavia, o pacto não impõe o duplo grau de jurisdição, dado que há de ser observado, no ponto, o direito interno. No Brasil, há pluralidade dos graus de jurisdição, exercida na forma do disposto na Constituição e nas leis processuais.
Ora, a Constituição estabelece a competência originária do Supremo Tribunal para o processo e julgamento dos agentes públicos que ela menciona (artigo 101, b, c). O Pacto de São José assegura o direito de recorrer a juiz ou tribunal superior. No caso, entretanto, tem-se julgamento pela Corte Suprema, que é mais do que tribunal superior.
O entendimento de que o pacto, nos artigos 8, h e 25, obrigaria os Estados a prover, no caso, duplo grau de jurisdição, constituiria interpretação extensiva da Convenção. A doutrina internacional, porém, adota, de regra, a interpretação restritiva dos tratados, principalmente quando a interpretação extensiva tiver como consequência limitações à soberania estatal ou a submissão do Estado a uma jurisdição internacional, arbitral ou permanente.
Observa Francisco Rezek (em "Direito Internacional", p. 95), do que não destoa C. Rousseau ("Droit International Public" p. 64), que existe um "reconhecimento geral de que a interpretação restritiva impõe o respeito às cláusulas que limitam, de algum modo, a soberania dos Estados."
É certo, escrevi alhures, que o Brasil aceitou a jurisdição da Corte de Direitos Humanos da OEA. Todavia, o Brasil, cônscio de sua soberania, não se comprometeu, no Pacto de São José, a subordinar os órgãos do seu governo à Comissão ou à Corte da OEA.
No caso, a pretensão seria, na verdade, de subordinação da Constituição à convenção, quando é de elementar saber que aquela constitui o ápice da pirâmide legal (Kelsen).
É fácil concluir, portanto, pela resposta negativa à indagação formulada.
CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, 76, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e da PUC-MG, é advogado. Ex-ministro, foi presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral




LUIZ FLÁVIO GOMES
TENDÊNCIAS/DEBATES

A Corte da OEA pode interferir na decisão do STF sobre o mensalão?
SIM
Decisão anterior se encaixa como uma luva
Folha do último dia 3, ao noticiar a intenção de Valdemar Costa Neto (PR-SP) de ir à Corte Interamericana contra o julgamento do STF no mensalão, informou que "o órgão internacional não tem poder de interferir em um processo regulado pelas leis brasileiras, segundo ministros e ex-ministros da corte. Quando a OEA condena, as punições são aplicadas contra os países que fazem parte da organização. Entre as penas estão a obrigação de pagar indenizações a vítimas de violações de direitos humanos".
A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF -ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. "Pacta sunt servanda": ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos.
De forma direta, a corte não interfere nos processos que tramitam em um determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão). De forma indireta, sim.
A sensação que se tem, lendo o primeiro parágrafo acima, é de que a corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF e que as sanções da corte são basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado.
No caso "Barreto Leiva contra Venezuela", a corte, em sua decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas.
A primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada). A segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo tribunal máximo do país, em razão do foro especial.
Esse precedente da Corte Interamericana se encaixa como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a corte decidiu foi o seguinte: "Se o interessado requerer, o Estado [a Venezuela, no caso] deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade".
A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função.
Ainda ficou dito que a corte iria fiscalizar o cumprimento da sentença e que o país condenado deve cumprir seus deveres de acordo com a Convenção Americana.
O julgamento do STF, com veemência, para além de revelar a total independência dos seus membros, está reafirmando valores republicanos de primeira grandeza, como reprovação da corrupção, moralidade pública, retidão ética dos agentes públicos e partidos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc. O valor histórico e moralizador dessa sentença é inigualável.
Mas do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do jogo do Estado de Direito, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis.
Por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes, autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.
LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001)LUIZ FLÁVIO GOMESTENDÊNCIAS/DEBATES

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